E você? É o homem ou a mulher do relacionamento?

Ali na esquina, há alguns anos, morava José.

Desde pequeno, José sempre se percebia um pouco deslocado da realidade em que o imaginavam. Na escola, em casa… É como se tudo o que perguntavam a José, tudo o que esperavam de José, tudo o que conversavam com José estivesse totalmente desconectado daquilo que percebia dentro de si próprio.

Quando o perguntavam sobre suas namoradas, José não se sentia mal porque não tinha namoradas. José se sentia mal porque não queria tê-las e, ao mesmo tempo, porque sabia que não tê-las soaria como o mais vermelho dos alarmes para seus familiares.

Imagina! Seria ele… Deus os livre, gay?! E seus amigos? O que pensariam?! Não que a ausência de relacionamentos – ou até mesmo “ficadas” – significasse alguma coisa. Não. Mas… que era esquisito, era.

E quando não o deixaram brincar com bonecas aos três anos de idade? Explicavam, calmamente, que deveria brincar com seus primos – e não com suas primas -, o devolvendo ao joguinho de futebol improvisado no corredor. José nem entendeu muito bem, só assentiu. De nada adiantava contestar. Bem ou mal, a grande maioria de seus colegas convivia com as mesmas normas comportamentais em casa e, portanto, ao menor deslize que cometesse, esses colegas estariam a postos para julgá-lo. É como crianças funcionam. Mas José não ficou muito feliz.

Só queria brincar…

Qual era o problema? Não era a própria essência de diversão que fosse algo prazeroso para ele? Por que, então, em seu caso, deveria ser algo imposto? Regrado?

Paciência. José era homem. Macho. Como homem, José brincaria, sim, de futebol (e jamais de boneca) e, bom, mais cedo ou mais tarde, José encontraria uma Maria, né? Seus pais sempre o criaram bem. Foram super cuidadosos para evitar quaisquer circunstâncias que facilitassem desvios. Ah, com certeza seria uma questão de tempo até que o rapaz se encontrasse.

Alguns anos se passaram.

Nessa estória, em particular, esse José, o nosso José, era gay.

Durante algum tempo, José se descobriu, se entendeu e, aos poucos, foi se permitindo. Se perdoando por erros que fora ensinado a condenar.

Agora, entendia que poderia, sim, brincar com bonecas. Poderia, sim, sentir interesse por quaisquer pessoas. Nossa! Poderia até vestir roupas que não eram usualmente consideradas masculinas! Que loucura!

Bom, agora… quem sabe, José poderia se envolver com alguém sem se condenar tanto. Estava pronto para um universo em que não exigiriam dele um comportamento específico, em que o seu jeito de ser não determinaria a sua aprovação ou a sua rejeição, ao menos naquele microuniverso particular.

Conheceu Lucas. Que menino simpático! Era engraçado, gentil, bonito e quantos gostos não compartilhavam! Foi sua primeira paixão.

José estava encantado. Que maravilha poder ser quem era ao lado de alguém de quem gostava tanto!

Lucas tratava José muito bem. Gostava que José não era muito espalhafatoso, sempre deixou claro que preferia ser discreto. Não o entendam mal! Lucas era super bem resolvido. Apenas não via necessidade para escândalos, extravagâncias.

José entendia. Ah, cada um é de determinada forma. Não tinha como exigir que Lucas gostasse de absolutamente tudo nele. Não que José fosse escandaloso, mal tivera tempo para ser, a bem da verdade. Antes, não era porque a sociedade o condenaria. Agora, bem, talvez pudesse ser. Foda-se a sociedade! Ah, mas… ama Lucas. E Lucas não curte muito, então não tem necessidade.

José não era exatamente masculino, apesar de se manter discreto. Lucas sabia disso. Trejeitos não eram muito a sua praia, mas via que José se esforçava para não dar pinta. Não o entendam mal! Lucas não tinha vergonha. Apenas não via necessidade de alguém ser afeminado só porque era gay. Não se passava de um estereótipo e Lucas não admitia estereótipos! Veem como é revolucionário?

José se acostumou. Ele estava muito feliz ao lado de Lucas. Se comportar de modo mais sóbrio seria um custo pequeno comparado à felicidade que extraía do seu relacionamento.

José nunca tinha se relacionado com ninguém. Nem homens, nem mulheres. Muito menos sexualmente. Não à toa, era cheio de inseguranças e repleto de incertezas.

Lucas não era a pessoa mais experiente do mundo, mas tinha alguns anos de vantagem sobre José.

Assim, quando chegou o momento em que se deitariam juntos pela primeira vez, José preferiu seguir aquilo de que Lucas já sabia gostar mais e ver se o agradaria. Lucas deixou claro que gostava apenas de penetrar, que por detrás dele ninguém passava nem perto!

Não que houvesse alguma coisa de errado, claro que não. Mas ele realmente não curtia, mesmo que nunca tivesse tentado. E fazia questão de afirmar quando tinha a oportunidade: jamais seria penetrado!

Quando tentou pela primeira vez, como costuma ocorrer com a maioria das pessoas, José não sentiu muito prazer. Com o tempo, passou a sentir e percebeu que gostava de ser penetrado. Bom, então, afinal, ele era um “passivo”.

Quando contou aos seus amigos, ouviu que fazia sentido, até porque Lucas, seu namorado, era bem dotado. Explicaram que não faria sentido que Lucas fosse passivo, já que seria um desperdício, então ainda bem! Quer dizer, haveria ainda uma questão relacionada ao corpo.

Que sonho! Desde que fosse discreto, minimamente masculino e atendesse às preferências sexuais de Lucas, seu relacionamento estaria uma maravilha!

Opa.

José começou a ficar confuso. Passou anos de sua vida reprimido, tentando se adequar aos esterótipos de gênero que lhe eram ensinados e que permeavam a sociedade.

Após todo o sofrimento por que passou, enfim, assumiu a sua verdade para si mesmo e para o resto do mundo. Pronto para uma vida da mais absoluta liberdade de manifestação comportamental e sexual, mergulhou com tudo nesse universo e… se encontrava praticamente na exata mesma posição?! Como assim?!

O mesmo machismo, o mesmo sistema de papéis fechados que o destruiu psicologicamente enquanto crescia, que pensava ter deixado para trás, estava ali. Sem tirar, nem pôr. Idêntico.

Não. A transgressão social de não ser heterossexual não tem qualquer relação com a reprodução desse machismo, não “limpa a barra” de ninguém. Trata-se da mera tradução dos comportamentos que aterrorizam cotidianamente a vida de mulheres e alguns homens comportamentalmente dissidentes para o microuniverso de uma minoria social.

Parece irônico, soa louco, quase masoquista. José estava confuso pra cacete. Qual era a diferença entre Lucas e todos que tornaram a sua vida um inferno durante tantos anos? Deveria vender a sua liberdade em troca de carinho? Não, de novo não.

José precisava conversar com Lucas.

Tudo o que haviam vivido rendeu ótimos momentos a José. Foi seu primeiro amor “livre”. Justamente por serem necessárias as aspas em um adjetivo que tão ansiosamente queria dar à sua forma de amar, José não poderia mais continuar com Lucas.

Quando se encontraram, José explicou.

Não é que fossem incompatíveis. Não se tratava de uma questão de perfis divergentes. Lucas, muito embora tenha dado muito carinho a José, lhe foi extremamente tóxico. Reproduziu, disfarçadamente, todos os preconceitos diante dos quais José algum dia já se apequenou, mas não mais.

José não era ingrato pelo carinho que recebeu, era ingrato pelo preço do carinho.

Insistia: não estava exagerando ao terminar seu relacionamento. Acreditava no poder do diálogo, mas não tinha mais tempo a perder.

José seria tão afeminado quanto quisesse e, mesmo que não desejasse sê-lo, se permitiria, ao menos, ter a oportunidade.

José seria tão espalhafatoso quanto a ocasião pedir.

José faria o que bem desejar quando transar. Penetraria, seria penetrado, talvez nem recorreria à penetração. E de jeito nenhum vai guiar isso de acordo com o seu corpo.

Ah, não. Chega de fiscal de comportamento.

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