Olhos que Condenam: como dói ver que somos racistas

Não existe filme de terror que possa ser mais assustador e dolorido que a vida real. Olhos que Condenam (When They See Us), de Ava DuVernay, é a prova disso. A minissérie de quatro episódios que estreou na Netflix no dia 31 de maio e já foi vista por mais de 23 milhões de pessoas em pouco mais de um mês é, provavelmente, uma das coisas mais difíceis que você verá, mas com certeza uma das mais necessárias também.

A série remonta a história de cinco adolescentes negros e latinos em Nova York no final da década de 1980 – Antron McCray, Yusef Salaam, Raymond Santana, Kevin Richardson e Korey Wise – que tiveram suas vidas interrompidas depois de serem acusados e presos por um crime que não cometeram. Todos passaram de cinco a 12 anos atrás das grades, depois de serem coagidos pela polícia a confessarem o crime, mesmo não tendo nenhum tipo de evidência que os ligasse ao ocorrido.

Tudo fica mais difícil ainda de acompanhar quando sabemos que essa história é real. E continua sendo real. Racismo não é novidade nem aqui no Brasil nem nos Estados Unidos. Porém, muitas vezes, escolhemos não enxergá-lo. Só que ele continua ali.

Ao assistir a série, sentimos raiva e impotência ao acompanhar o trabalho da promotora branca Linda Fairstein, responsável por acusar e incriminar os rapazes, assim como o da advogada branca Elizabeth Lederer, culpada por colocá-los na prisão. Mas o problema vai muito além. “Elas são parte de um sistema que foi construído para ser assim. Construído para oprimir, para controlar. Para deixar uns acima e outros abaixo”, explica a diretora Ava, em entrevista a Oprah Winfrey, no especial sobre a série, também na Netflix.

Se você atravessa a rua ou segura mais forte sua bolsa ou mochila quando se aproxima de um homem negro, você é o problema. Nós somos o problema. Neste exato momento, as prisões estão lotadas de pessoas negras presas por crimes que não cometeram. Era muito fácil acreditar que os cinco garotos cometeram os crimes, ainda é. O racismo nos faz achar que negros são inferiores, sempre associados àquele universo de crime. Nós somos os culpados por incriminá-los.

Cada momento dos quatro episódios é tão difícil de acompanhar que descrevê-los não faria jus. Precisamos assistir. Encarar que somos racistas, vivendo num mundo racista e que, enquanto temos o privilégio de somente assistir uma história complicada, cinco e muitos outros meninos a estão vivendo.

Raymond Santana, Kevin Richardson, Korey Wise, Ava DuVernay, Antron McCray e Yusef Salaam

Em 2002, o último dos rapazes que permanecia preso, Korey, é libertado após outro preso, Matias Reyes, assumir a autoria do crime. Só em 2014, a cidade de Nova York fechou um acordo com os cinco homens, oferecendo 41 milhões de dólares ao grupo como indenização. Nenhum pedido de desculpa ou reconhecimento de conduta criminosa da polícia.

Linda Fairstein se tornou uma autora de romances policiais. Depois da série, perdeu seu contrato com a editora e também se demitiu de todos os cargos públicos que ainda ocupava. Elizabeth Lederer também renunciou ao cargo que tinha como professora na Universidade de Columbia. Podemos pensar que a vida deve estar complicada para elas. Mas imagine para os cinco que perderam sua adolescência e inocência dentro da prisão.

Linda Fairstein e Elizabeth Lederer após o infame julgamento

Na mesma entrevista à Oprah, os cinco meninos, hoje adultos e pais, falam sobre a consequência do que enfrentaram. Antron, convencido pelo pai na época a confessar o crime para polícia, faz o depoimento mais tocante. “Não perdoei o meu pai. Ele abandonou a minha mãe. Eu o odeio. Eu sei que tenho problemas, mas eu não procuro ajuda. O sistema quebrou coisas em mim que nunca serão consertadas. Minha vida está arruinada”, dispara, segurando as próprias lágrimas e levando o elenco que o assiste ao choro inconsolável.

Na época do crime e do julgamento, Donald Trump pagou milhares de dólares para publicar uma propaganda nos jornais, pedindo o retorno da pena de morte ao estado de Nova York. Perguntado há poucos meses sobre o que achou da série, sabendo da inocência provada dos cinco, Trump se recusou a pedir desculpas pelo anúncio e ainda afirmou: “Toda a história tem dois lados. Eles assumiram a culpa”. Este homem foi eleito presidente dos Estados Unidos.

Donald Trump: o presidente que pediu a morte de cinco inocentes

Nada do que foi feito ou ainda pode ser feito vai mudar a história de Antron. Ou de Kevin, Raymond, Yusef ou Korey. O sistema falhou com eles. Nós, como sociedade, falhamos com eles. E continuamos a falhar com tantos outros. Olhos que Condenam nos faz confrontar essa falha da maneira mais dura possível. E ainda assim nunca teremos a dimensão de como foi duro para cada um deles. Que doa em todos nós.

Assista Olhos que Condenam na Netflix

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