HIV, AIDS e a perigosa cultura do silêncio de nossa geração

Acho que a maioria de nós não se lembra da primeira vez em que escutou falar sobre o assunto. Eu, pelo menos, não tenho a menor lembrança. Me lembro que me assustava muito mais do que me assusta hoje em dia. Quando descobri sobre a sua existência, quem quer que tenha me explicado, o fez com um tom bem sério, um tom alarmante.

Hoje, com pouco mais de 20 anos, não escuto o mesmo tom alarmante em nenhum ambiente que frequento. Acho que qualquer um com idade semelhante (ou mais novo), se hoje fosse explicar para alguém mais novo, muito dificilmente contaria buscando imprimir sobre o ouvinte a mesma preocupação que um dia buscaram imprimir sobre nós.

À primeira vista, isso poderia soar como um ótimo sinal, certo? Afinal, o terror que certo dia já assombrou a todos, hoje se apequenou. Provavelmente, consequência dos avanços da medicina, não? Fim dos estigmas, pressupomos?

Praticamente a face do HIV e da AIDS no Brasil, Cazuza estampou a capa da revista Veja em 1989 em uma matéria extremamente tendenciosa.

As notícias que vimos acompanhando nos últimos anos sobre crescentes números de pessoas que contraíram infecções sexualmente transmissíveis (“IST’s”) levam a questionar o real teor de tanta calmaria e silêncio em torno do vírus e da síndrome mencionados no título.

Nos primeiros anos que se seguiram à identificação dos primeiros casos de AIDS, um enorme medo surgiu, medo esse que era reflexo da vontade de viver, da sede pela sobrevivência, que, à época, parecia estar gravemente ameaçada por um agente até então desconhecido.

A isso, se seguiu uma temporada de terrorismo midiático, da qual poucos daqueles que compunham os conjuntos demonizados saíram incólumes.

Nesse cenário, as estatísticas colhidas e estudadas pelas médicas e médicos que tomaram a frente na corrida por avanços relacionados ao vírus e à síndrome acabaram por se tornar um importante instrumento para a promoção do terrorismo mencionado. Isso porque, com o tempo, a análise das pessoas infectadas pelo vírus e de seus respectivos comportamentos culminou no apontamento de um chamado “grupo de risco”: notadamente, homens que faziam sexo com homens (“HSH”), travestis, mulheres transsexuais, usuários de drogas injetáveis e pessoas que trabalhavam com sexo.

A composição do “grupo de risco” acima descrito foi um banquete cheio para a lgbtfobia, o machismo e as demais rejeições de comportamentos sexuais dissidentes daqueles culturalmente prevalentes e impostos. Em uma narrativa quase novelesca, as vítimas foram demonizadas e transformadas em inimigos, de modo absolutamente oportunista e conveniente. Denominada “peste gay” nos Estados Unidos, apelido posteriormente disseminado mundo afora, a AIDS estendeu o seu impacto sobre a vida dos LGBTQ+ para além de sua saúde física. Já ameaçados pela vulnerabilidade que carregavam, passaram a ver também ameaçada a sua saúde mental.

Aderentes de práticas sexuais que fugiam àquilo compreendido e imposto como “normal”, após anos batalhando por sua liberdade sexual e obtendo importantes conquistas, se viram diante de um enorme obstáculo. Não só sofriam os impactos psicológicos de ver sua saúde fragilizada por meio de um dos aspectos pelo qual mais lutavam, como também por meio do preconceito que os sufocava.

A opressão e o oportunismo foram e são imperdoáveis, mas ignorar as estatísticas de que se utilizaram é um caminho muito perigoso. Rejeitá-las, após tudo que, de certo modo, viabilizaram, é compreensível. Contudo, são também essas estatísticas, despidas do preconceito que delas se apropriou, a porta para a expansão da visibilidade, consciência e dos avanços acerca da sorologia, especialmente dentre a comunidade LGBTQ+. Devemos encará-las como uma realidade, confessá-las. Tornar o discurso que, durante tempo nos marginalizou, no discurso que nos levará a cada vez mais conquistas.

De acordo com o Relatório Epidemiológico publicado pelo Ministério da Saúde em 27 de novembro de 2018, entre 2007 e junho de 2018, verificou-se que, entre os homens, (a) 59,4% dos casos registrados foram decorrentes de exposição homossexual ou bissexual; (b) 36,9% de exposição heterossexual, e (c) 2,6% se deram entre usuários de drogas injetáveis (UDI). Já entre as mulheres, nessa mesma faixa etária, nota-se que 96,8% dos casos se inserem na categoria de exposição heterossexual e 1,6% na de UDI.

Um dos fatores que explica a maior incidência de infecção dentre homens expostos a práticas identificadas como homossexuais ou bissexuais é a maior propensão do sexo anal a facilitar a mesma, conforme detalhado abaixo.

É perfeitamente natural que exista populações-chave em infecções. Aproveitamos a oportunidade para ressaltar que o termo “grupo de risco” não deve ser propagado, pois, ao vincular a infecção ao caráter identitário de determinados conjuntos de pessoas, se posicionou como um recurso linguístico facilitador da marginalização e opressão de muitos indivíduos. Hoje, o termo preferível é a expressão “populações-chave”.

Bem, se falamos em uma infecção hipotética “A”, transmitida com maior frequência em razão de um comportamento “B”, é inevitável que as pessoas que exercem o comportamento “B” usualmente estarão mais vulneráveis à infecção “A”.

No caso da AIDS, nos deparamos com a conveniência – e o azar – de um dos comportamentos “B”, identificados como um comportamento tendente à transmissão do HIV, já ser, antes mesmo da explosão da epidemia, discriminado por grande parte da população.

A sua vulnerabilidade àquela infecção ocorria justamente em razão daquilo que os demais mais abominavam neles – as suas diferenças comportamentais.

A veiculação e propagação acerca da “peste gay” jamais se tratou de um mero e genuíno medo dos males que da infecção poderiam advir, mas sobretudo da situação oportunística diante da qual uma sociedade lgbtfóbica e preconceituosa se viu.

Possuía agora dados que legitimariam, aos olhos de muitos, a disseminação da ideia de que o modo de vida daqueles que não aderiam a comportamentos heterossexuais era abominável, equivocado e que, como esperado, enfim estaria levando a consequências desastrosas. Falava-se muito, inclusive, em uma punição, quando o discurso tomava um cunho mais religioso.

Após o enorme caos e terror iniciais, conforme avançava a medicina, em resposta às lutas e demandas de organizações que exigiam que se conversasse sobre a AIDS, a percepção de ameaça à vida diminuía e, com isso, o desespero geral pela sobrevivência. O estigma, no entanto, resistiu.

Silvio Grimaldo, ex-assessor do MEC na gestão Bolsonaro, em tuíte sorofóbico e lgbtfóbico sobre Glenn Greenwald, notório jornalista, casado com o deputado federal David Miranda.

Em 2019, apesar da aparente maior tranquilidade que permeia as conversas sobre AIDS – não muito frequentes -, devemos nos questionar sobre a força desse estigma. Seria ele, na realidade, o responsável pelo silêncio?

É evidente que temos de deixar de lado o estigma produzido, mas não ignorando o modo de transmissão do o vírus, muito menos o fato de que existe, sim, a vulnerabilidade de populações-chave, dentre as quais nos incluímos. Precisamos nos apropriar dessas vulnerabilidades e priorizar a nossa saúde. Evitar o assunto por medo do estigma não apagará uma vulnerabilidade que nada mais é além da realidade.

Pelo contrário, a agrava, seja pela ignorância voluntária, seja pela passividade e omissão na luta por uma educação sexual mais expansiva, ou ainda, por um medo do diagnóstico. Um medo que, hoje, talvez seja muito menos fundado em um desespero pela vida. Um medo que prolata exames, que prefere não saber. O véu da ignorância pode ser muito confortável, mas, no nosso caso, é também de imensa irresponsabilidade e, praticamente, irracional após a luta pela qual nossos precedentes passaram para sobreviverem.

É claro, todo o preconceito e todas as barbáries por quais a comunidade LGBTQ+ já passou são imperdoáveis e de modo algum, pretende-se afirmar que devem ser desconsiderados e/ou esquecidos. O que se pretende é colocar em voga o modo como temos lidados com os mesmos.

Até que ponto fugir do assunto nos protegerá? Será, mesmo, que é mais importante fugir do estigma do que lutar pela visibilidade, que tantas vidas pode salvar? Vamos deixar a ignorância e a crueldade daqueles que por tantos anos já nos intimidaram configurar um obstáculo tão poderoso à nossa felicidade?

Em tempos em que ainda precisamos argumentar a necessidade de conversas a respeito de educação sexual, nós, simultaneamente protagonistas e antagonistas dessa história, não podemos mais colaborar com o silêncio por medo de julgamentos. Todo o receio de sociabilidade atrelado à infecção foi fruto do estigma outrora produzido a partir de uma narrativa que nos demonizou, mesmo quando as rejeições e discriminações ocorriam dentro da própria comunidade.

Integrantes da Act Up (“AIDS Coalition to Unleash Power“) em manifestações, carregando cartazes que alertavam para os riscos do silêncio sobre o vírus e a síndrome.

O temor por nossas vidas, anteriormente bem maior, hoje, após anos de luta, não preocupa tanto. Quando preocupava, o medo de julgamentos sequer tinha tempo fôlego para se manifestar, tamanho era o desespero pela vida. Não podemos deixar que as vitórias resultantes de uma luta tão árdua por respostas mais eficientes e enérgicas da medicina seja sucedida por tamanho silêncio. Silêncio por medo de um inimigo muito, mas muito menos aterrorizante do que aquele ao qual muitos de nós já sobrevivemos.

O medo de que conversas sobre o assunto ressuscitariam o estigma atrelado à comunidade LGBTQ+ perpetua a falta de informação e o silêncio, que apenas trazem prejuízos ao invisibilizar a questão.

De um lado, contribuem com o isolamento e a depressão de alguns que já sabem carregar o vírus, já que o assunto acaba se transformando em um tabu sobre o qual todos evitam conversar.

De outro, contribuem para a maior ignorância da população em geral, que desconhece o modo como o vírus e sua transmissão funcionam e, portanto, como se prevenir, ou então, quando conhecem, não levarem tão a sério os cuidados que se deve tomar, já que, afinal, mal se fala em HIV/AIDS hoje em dia, então não deve ser tão arriscado, não é?

Então, o medo do HIV foi, realmente desconstruído? Diante de tamanho silêncio, será que se tem ciência de quão melhores são as condições de tratamento hoje? Será que a rejeição a estatísticas é mesmo o caminho para combater o preconceito? Afinal, não foi nos anos 80 que começou. Estamos atrasados e resilientes.

3 comentários sobre “HIV, AIDS e a perigosa cultura do silêncio de nossa geração

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